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ARTIGO: Recuperação Judicial do Produtor Rural pela juíza Dra. Clarissa Tauk

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Em recente decisão, a 4ª Turma do STJ fixou a possibilidade de o produtor rural ter os créditos constituídos em data anterior ao seu registro na Junta Comercial submetidos à sistemática da recuperação judicial. A linha argumentativa vencedora teve oposição à altura, iniciando-se um debate valioso para o cenário atual do agronegócio, que ainda não exauriu todos os pontos de conflito que certamente estão por vir.

A questão principal para a solução do tema reside no reconhecimento da natureza jurídica do ato de inscrição do produtor rural na Junta Comercial, se declaratório ou constitutivo, e como seus efeitos refletem nas relações negociais já travadas, projetando-se ex nunc ou prospectivos (ato constitutivo) ou extuncou retroativo (ato declaratório).

Por certo, o art. 971 do Código Civil faculta ao empresário, cuja produção rural constitua sua principal função, o registro no órgão competente. O entendimento levantado pelo Min. Marco Buzzi, em voto vencido, considerou a natureza constitutiva do ato, operando, por tal, efeitos ex nunc (não retroativo). Em razão da não retroatividade, somente a partir do registro é que o produtor rural pode ser considerado empresário e, a partir daí, inicia a sujeição de seus créditos ao regime de recuperação judicial.

Tal entendimento, conforme o exposto pelo Ministro em seu voto, reflete a necessidade da segurança jurídica nas relações de crédito, pois “não seria lógico (…) aqueles que se tornaram credores de uma pessoa física, repentinamente, em gritante violação ao princípio da boa-fé contratual e da segurança jurídica das relações privadas, tenham seus créditos incluídos em processo recuperacional”.

Deve ser feito um paralelo, na medida em que o produtor rural que opte por não adotar a forma de empresário, quando não realiza a sua inscrição, passa a atuar pessoalmente na execução de sua atividade, submetendo-se ao regime jurídico próprio das pessoas físicas, contemplado no Código Civil. Por seu turno, aquele agricultor que opte por realizar sua inscrição junto ao órgão competente passa a ser equiparado para os efeitos legais à figura do empresário.

Daí porque a natureza jurídica do registro, no entendimento do Ministro, é constitutiva. Nestes termos também é o Enunciado n.º 202, do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil (“O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva,sujeitando-o ao regime jurídico empresarial“).

Somente a partir da inscrição na Junta Comercial fica o produtor rural submetido ao regramento da Lei 11.101/05, podendo pedir sua recuperação judicial, ficando os créditos anteriores a este ato submetidos ao Código Civil, mesmo que há mais de dois anos viesse exercendo atividade econômica nos parâmetros empresariais, por não atendimento ao requisito legal de exercício regular da atividade, estampado no art. 48, caput, do citado diploma legal. Assim, somente os débitos contraídos dentro da adoção do regime empresarial pelo produtor rural podem ser incluídos na sistemática da recuperação judicial.

Portanto, o exercício da facultatividade de se inscrever não pode ter efeitos retroativos, e assim atingir a esfera jurídica daqueles que se tornaram credores em época anterior à inscrição como empresário individual, quando ainda entendido o agricultor como pessoa física e com os benefícios inerentes ao reconhecimento daquela situação. No entendimento do Min. Buzzi: “Tem-se como inviável, portanto, que os recorrentes obtenham da justiça achancela das vantagens inerentes aos dois regimes, pois além de terem auferido todos os benefícios da informalidade do produtor rural (atuante na vida civil como pessoa física), agora, posteriormente, com a constituição mediante o registro mercantil de pessoa jurídica empresária, pretendem sujeitar terceiros com quem contrataram, em seu regime anterior, a um processo concursal típico empresarial, qual seja, o da recuperação judicial.Vale dizer, querem o melhor dos dois mundos”.

Sob distinto enfoque, apresentam-se os argumentos que fundamentam a natureza jurídica declaratória do ato de inscrição do produtor rural na Junta Comercial, operando efeitos extunc e, portanto, retroativos.

Superando a Teoria francesa dos Atos de Comércio, que regulava o antigo Código Comercial, o Código Civil passou a contemplar a Teoria da Empresa, segundo a qual  a atividade típica de empresário não é definida pela sua natureza, mas pela forma como é explorada, associando-se o exercício profissional da atividade econômica à habitualidade, pessoalidade e organização (art. 966 do Diploma Civil).

Não se exige o prévio arquivamento dos atos constitutivos na Junta Comercial para o reconhecimento como empresário, operando o registro natureza meramente declaratória. Sob esta ótica, seria desarrazoado conferir tratamento jurídico distinto quando se trata da figura do produtor rural, dispensando-se tal exigência formal também para este. 

Nesta linha, considera-se empresário rural aquele que exerce comprovadamente atividade econômica rural organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, afigurando-se irrelevante a inscrição na Junta Comercial.

A inscrição viabiliza a obtenção de melhores favores no ordenamento jurídico, na medida em que o produtor rural passa a se sujeitar ao regime empresarial, afastando-se dos regramentos do regime comum exposto no Código Civil.  Entretanto, tal ato não lhe confere regularidade para o exercício da atividade rural reconhecida como empresarial, na medida em que para o agrícola o registro é mera faculdade e, portanto, inscrito ou não, está sempre em situação regular.

Outro não é o escólio do Min. Luis Felipe Salomão, ao entender que “a qualidade de empresário rural também se verificará,nos termos da teoria da empresa, diante da comprovação do exercício profissional da atividade econômica rural organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, sendo igualmente irrelevante, para tanto, a efetivação da inscrição na Junta Comercial, ato formal condicionante de outros procedimentos.”

Prosseguindo para o ponto principal deste artigo, em leitura ao dispositivo 48 da Lei 11.101/05, temos elementos reconhecidos como condições de admissibilidade ao requerimento da recuperação judicial, sendo eles: o exercício da atividade empresarial no lapso temporal de dois anos e a realização do registro.

Debruçando-se sobre a figura do produtor rural, tem-se por satisfeitas tais exigências quando realizado o registro na forma da lei a exploração da atividade rural nos moldes empresariais tenha ocorrido pelo período mínimo de dois anos.

Conquanto indispensável o registro, não há na lei indicação temporal da sua efetivação, tão somente do exercício da atividade empresarial, que deve perfazer o período de dois anos. Daí decorre que para o produtor rural, reconhecido na figura de empresário, basta o exercício da atividade pelo período de dois anos, ainda que o registro tenha ocorrido em prazo menor.

A lei exige apenas o exercício da atividade de forma regular, sendo o registro condição de regularidade para o empresário comum, mas não o é para o produtor rural, nos moldes do exposto no art. 971 ao conferir-lhe a facultatividade do ato.

O raciocínio utilizado para tal abordagem é que o produtor rural, ainda que não registradas suas atividades ou antes de tal prática, quando as exerce de forma profissional e organizada para a produção e circulação de bens e serviços, caracteriza-se como empresário.

Seguindo tal abordagem, entende o Min. Luis Felipe Salomão que “deve, sim, haver o registro empresarial anterior à impetração da recuperação judicial. Contudo, a comprovação da regularidade da atividade empresarial pelo biênio mínimo estabelecido no caput do art. 48 da Lei n. 11.101/05 deve ser aferida pela constatação da manutenção e continuidade do exercício profissional (critério material), e não somente pela prova da existência de registro do empresário ou ente empresarial por aquele lapso temporal (critério formal).”

Destarte, ao produtor rural que opte por realizar o registro mercantil há menos de dois anos do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, é dada a possibilidade de demonstrar por outros meios o exercício da atividade rural no biênio exigido pela norma.

Na mesma linha, tem-se o art. 48 §2º da Lei 11.101/05, incluído pela Lei nº 12.873 de 2013, que faculta a comprovação da atuação rural por meio da Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ, evidenciando que o registro é declaratório da condição de regularidade, não constituindo-se como única prova apta a caracterizar o efetivo exercício da atividade e permitindo-se a sua comprovação por meio diverso.

Igualmente, renomados estudiosos do Direito Comercial, em reunião da III Jornada de Direito Civil, aprovaram os seguintes enunciados que tratam do tema em análise:    

ENUNCIADO 96 – A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis. 

ENUNCIADO 97 – O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.

O que se tem por decorrência do entendimento consagrado no voto vencedor no julgamento do Recurso Especial é a sujeição à recuperação judicial dos créditos constituídos em decorrência do exercício da atividade empresarial pelo produtor rural, ainda que na época não tenha levado a efeito seu registro. Não há que se distinguir o regime jurídico aplicável no adimplemento das obrigações contraídas antes ou após o registro, ambas submetendo-se aos regramentos da recuperação de empresas. 

Nesse cenário, a Corte da Cidadania inaugura uma nova abordagem para as tratativas do produtor rural no setor econômico,  e ao que parece, ficará a critério dos Bancos e demais agentes financeiros a avaliação de risco para identificação da condição de empresário do agente rural que postula por créditos no mercado.

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